Wednesday, January 17, 2007

O último vento



Foi antes que o vento sucedesse e sacudisse frouxamente as cortinas. Foi antes de abrir as janelas com o ranger das dobradiças.

Queria não pensar, não erguer-se, perder-se. Queria murar pensamentos, ser nuvem branca, ser noite escura e fria seguida de três invernos. Imaginou percorrer os olhos por paredes inexistentes. Descerrou olhos. No entanto, viu luz mortiça dum candeeiro salpicando as paredes de um amarelo quase desmaiado: mortiço. Era a mesma luz, era ela a mesma. Gritou erguendo soluços frágeis. Findava o cansaço. Cessara o silêncio atravessado no dia. Afundou-se na cama, levou as mãos aos ouvidos, como para imaginar não ouvir o som de vazios.

Se pudesse virgular o tempo para pausá-lo, se pudesse amarrá-lo ao poste para tardar a partida do último trem... Odor inexistente que atravessa as narinas. Sentiu não arfar com o cheiro comum e ausente.

Era manhã quando atravessou a rua com os mesmos olhos à procura das mesmas paisagens. Era mormaço quando sentou no alpendre à espera dos mesmos cheiros, dos mesmos arruídos dos pés que ali passavam. Ouvir o canto dos pássaros fugidios. Rever as horas de ontem.

Debaixo das folhas secas e buliçosas o banco tristemente e misteriosamente vazio. Ele não veio hoje. Sentiu a vida como as mesmas folhas secas da laranjeira velha em tempos de Outono: caem pelas ruas, rastejam até serem esfareladas pelos pés de animais, pelas rodas de bicicletas...

“Olhar sem ver”

Ele se foi: não-gesto. Não-adeus. Não-beijo. Não-corpo sentado no banco em ferrugem. Não-olhos a lerem fingidamente o livro de páginas ermas e surradas. Ele cansou-se de ficar ali sentado ao pé da laranjeira de todos os dias.

Ela que sentava todos os dias no alpendre... Se ao menos ela o visse quando ele a fitava com seus olhos enamorados e cansados de espera, vê-lo-ia parvo. E se ele a fitasse quando ela, extática, sentia o sopro do vento levando-lhe o perfume de seus cabelos. E se o mesmo vento que trazia o odor do perfume não levasse as cartas noturnas postas por ele no alpendre da casa dela...
Solidão que se pinta em acasos. Saudade: porto que se vai antes dos pés.

Ela: caminhar vago e lento. Os pés atravessam corredores sem chão. Bússolas norteiam o corpo a caminhos de Nada. Seu destino é ontem.
Ele: última carta calada pelo vento. Último olhar não visto por ela. Último apito do trem. Seu destino é um rio pequeno. Se for preciso vê-la então que se deixe dormir.

No quarto dela, vento sucede e sacode as cortinas, janelas se abrem. Se ela quiser vê-lo então que se deixe acordar.

Cleilton Silva

2 Comments:

Blogger Felipe Benevides said...

Vemos influências. Vemos os dois pontos. Vemos. Mas lemos e gostamos. Adorei o 'extático'. Se lêssemos pareceria 'inerte'.

Pláceme!

8:33 PM  
Blogger Lasevitz said...

li seus comentários no orkut sobre meus textos e resolvi retribuir.

gostei muito da sua forma de escrever, e fico feliz de saber que fui elogiado por alguém que escreve tão bem. você é bastante seletivo nas palavras que usa e coloca muito peso nelas. na realidade, seus textos - ou, ao menos, este - depende bastante desse peso. sinto como se eu estivesse lendo um clássico. comecei a leitura com a preguiça de quem quer um ponto final. termino pedindo reticências.

"Se pudesse virgular o tempo para pausá-lo, se pudesse amarrá-lo ao poste para tardar a partida do último trem."

é só um dos vários belos trechos do texto, mas o ressalto porque me identifiquei. na verdade, me identifiquei com vários trechos, no sentido de que nossa escrita tem alguma proximidade.

mas você quer palavras escolhidas a dedo que des-cubram cenários, e se algo acontece, é como se fosse carregado nas costas do cenário. do vento, talvez.

já eu quero palavras tão espontâneas quanto a conversa e, se há algum cenário, ele é carregado nas costas dos personagens.

em outras palavras, eu uso palhaços de circo, você usa o vento e folhas secas. eu acho.

abraço!

11:32 PM  

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